quarta-feira, 27 de maio de 2009

O que Moacyr Scliar fala sobre Inspiração à Beira do Abismo

APRESENTAÇÃO
Inspiração à Beira do Abismo é, antes de mais nada, uma grata surpresa. Trata-se de um livro de contos e o conto é um gênero muito difícil, sobretudo por causa de sua enganadora facilidade. Mário de Andrade uma vez disse que conto é tudo aquilo que o autor quer chamar de conto e muitos contistas, sobretudo os jovens, acharam que esta definição, vinda de um autor consagrado, permitia qualquer tipo de aventura ficcional. Mas não é assim. O conto é um importante gênero literário e requer, de quem nele se aventura, conhecimento, disciplina, rigor. Pois bem, Jocir Prandi tem todas estas condições e ainda outras. Para começar, sabe contar uma história, sabe prender o leitor com sua narrativa. Tem um seguro domínio da palavra, o que é fundamental, pois a palavra é o instrumento de criação estética do escritor. Seus personagens respiram autenticidade, como vemos, por exemplo, em Sarjeta, pungente retrato de nossa realidade. E finalmente não lhe falta um toque lírico, poético, que podemos detectar nesta pequena e esplêndida peça literária chamada Vazio. São umas poucas linhas, mas a densidade de emoção e de beleza ali é imensa. Pensem numa frase como “meus botões puxando conversa”, digna de um Mário Quintana, na medida em que inverte de forma inusitada o habitual “conversando com meus botões”. Mais adiante, e como uma espécie de clímax, descobrimos que há “no sono ou na vigília, sonhos, muitos sonhos para sonhar”. A fórmula perfeita para uma vida bem vivida. Uma lição que Jocir Prandi nos ensina com competência, com afeto, com generosidade.
Moacyr Scliar é autor de 80 livros em diferentes gêneros, colaborador de numerosos periódicos no país e no exterior e membro da Academia Brasileira de Letras.

sábado, 23 de maio de 2009

Três primeiros capítulos do conto Passarinho, publicado em Inspiração à Beira do Abismo, meu primeiro livro.

PASSARINHO

I.

Horário de pico, trânsito caótico, todos no mesmo lugar ao mesmo tempo. No lusco-fusco, garoa, faróis, baixa visibilidade. Na Érico Veríssimo, os veículos passando, um a um, sem trégua. Na Casimiro, nosso carro esperando, o motor roncando suave, o limpador do pára-brisa ativo, o motorista, meu irmão, impaciente. Ao lado dele, eu, calada, observando as gotas de chuva misturando-se nos vidros, nos paralelepípedos, no branco encardido da faixa para pedestres, nos cartazes de propaganda política. 4 de outubro estava longe, mas a campanha já mudava a cara da cidade. Lula e Olívio disputando lugar com FH e Britto em paredes, postes, urnas, cargos públicos.
Mas eu olhava de modo vago. A cabeça ainda não deixara a Recanto Construção e Imóveis. Computador, software de arquitetura em 3D, alguns projetos em andamento, um desmembramento de terreno na fila de espera, algumas ART a registrar no CREA, uma licitação de relativa importância. Ah, tinha de agendar uma conversa com o capitão Guedes, para adequar um projeto às normas de segurança. Afora isso, só me importavam as obras assistenciais: Campanha do Agasalho 98, Liga Feminina de Combate ao Câncer, SOS Inverno. Eis meu mundo, do qual tinha aprendido a gostar, dedicada ao extremo. Fuga, sublimação.
A garoa prosseguia desde o meio-dia. Eu tinha pena dos pedestres, não sem certo remorso por estar no conforto de um carro moderno e por vê-los molhados até a cintura, passando frio, dando um jeito com guarda-chuvas de “um e noventa e nove”. Ou com um pedaço de papelão, como o homem mal vestido que se aproximava.
Pobre gente! Eu fazia o possível para amenizar as desigualdades. Agora ainda mais, sendo meu irmão Roger o vice-prefeito. Mas já vinha ajudando antes e continuaria depois. Sou atuante até hoje. Mais do que a maioria das pessoas, menos do que me pede a consciência.
O trânsito na Érico Veríssimo continuava intenso. Roger socava o volante. A paciência não era uma de suas virtudes, e as virtudes não eram comuns nele. O homem que se protegia com o papelão passava pela faixa para pedestres. Numa mão, um saco de estopa. Resguardava-o da garoa mais que a si mesmo.
Nisso, o trânsito na Érico deu uma folga. Roger quis atravessar, mas o homem estava no caminho. A buzina fez-se ouvir, e o pedestre olhou-nos. Foi aí que nós o reconhecemos, e ele a nós. Ficou espantado, tanto quanto eu. Roger foi o primeiro a reagir, e com fúria: acelerou! O homem arregalou os olhos e saltou para um lado, o carro passando a poucos centímetros dele. Rápido, mal se mantendo de pé no calçamento escorregadio, ele pegou o saco que tinha deixado cair e saiu correndo. O papelão ficou para trás. Além do cruzamento, Roger freou bruscamente. Quando olhamos para trás, o homem já tinha sumido.

II.

Águas passadas movem moinho. Seguem rio abaixo, ganham o mar, fazem-se vapor, depois gotas de chuva que se precipitam tal e qual lágrimas. Quando menos se espera, estão no mesmo rio, movendo as pás do mesmo moinho.
Lá fora, as gotículas frias da garoa. No banheiro, a água morna do chuveiro a me deslizar pelo corpo. Mas eu só sentia as águas salgadas do Arroio envolvendo-me os pés descalços, impregnando a areia, indo e voltando, indecisas como agora as lembranças.
No intervalo entre cada onda, distantes, risos e o compasso de uma marchinha de carnaval. João e eu nos pusemos a dançar, rindo da água que respingava ao impacto de nossos pés. Fugíramos do baile (e do preconceito), trazendo de lá apenas alegria e uma suave embriaguez.
Uma onda trouxe-me ligeira vertigem. Ele me amparou e nós rimos outra vez. Os raios da lua iluminavam nossos olhares correspondentes. Naquele instante, o baile ficou mais distante, e nós dois, mais próximos. Era a hora de algo acontecer, mas a insegurança colocou João a caminhar. Fui atrás dele, pus-me a seu lado, sonhos bons na cabeça, uma doce ansiedade agitando-me o coração. Ele me olhou outra vez, palavras a dizer, palavras que eu queria ouvir. Mas vieram só as ondas; palavras, não.
Não era difícil compreendê-lo. Ele, pedreiro, eu, universitária de futuro promissor. E filha do patrão. Para muita gente, essa diferença tinha bastante importância. Para os homens da família, muito mais. Em nome de certos valores, evitavam ao máximo a proximidade entre mim e qualquer empregado da construtora. Eu era um tanto rebelde, mas queria tanto bem a João desde a infância e não o queria expor. Por isso, ao menos aparentemente, eu me curvava à “lei” dos Menezes Dutra. Mas ninguém podia impedir olhares discretos, a doçura de um sorriso, palavras trocadas quando a oportunidade se oferecia e, muito menos, a magia de sonhos cada vez mais freqüentes e bem-vindos.
Na época, a construtora tocava duas obras no centro do Balneário Arroio do Silva, para amigos da família. João começava a se destacar em sua profissão e foi um dos pedreiros deslocados até lá. Aproximou-se o carnaval e também nossa família trocou Recanto pela praia.
O baile de carnaval era ao ar livre, aberto a todos. O momento era de alegria e a vigilância sobre mim afrouxou. Após o primeiro copo, nossa auto-vigilância também ficou de lado. Colocamo-nos lado a lado, copos nas mãos, olhando os foliões. Fomos entrando mais e mais no clima, liberando-nos para algumas palavras, depois olhares, mais adiante sorrisos, mão na mão, cabeça no ombro. Os comentários preconceituosos não tardaram. Minha família logo perceberia e tomaria providências. E o álcool decidiu por nós: se não podíamos ficar juntos ali, ficaríamos em outro lugar. E nos afastamos do povo.
A água continuava seu eterno vaivém. Nossos pés na praia, seus formatos moldando a areia, marcas que as ondas nunca apagaram por completo. Uma sensação estranha, mescla de alegria e medo, quase dor, invadia-me o corpo todo. Aquele sentimento tão antigo, mas tão novo na intensidade, tão profundo, mas tão suave na maneira de se manifestar, era bem mais do que eu esperava para aquela noite. No entanto, de repente, eu queria mais. Queria aquele sentimento como ele ainda não existia, em forma de palavras. Tudo para não pairarem mais dúvidas, embora eu não mais as cogitasse.
Segurei-lhe a mão, contive seu avanço. Ele hesitou, o olhar sempre tímido. Gaguejou algo ininteligível, não encontrando palavras. Depois, acreditou que não fossem tão necessárias. E, com certa brusquidão, como se lutasse contra a própria timidez, quis me beijar, definir tudo de uma vez. Fiquei assustada, recuei. Aquilo quebrava a seqüência suave e natural que vínhamos desenvolvendo. Ele avançou. Quando eu quis fugir, ele me segurou pelos braços. Tentei empurrá-lo, mas João era mais forte. Senti-me impotente, chocada. Num piscar de olhos, caía do “sétimo céu” aos “quintos dos infernos”. E desmaiei. A seqüência é muito vaga em minha lembrança. Tudo se mistura a pedaços de pesadelos que me marcaram a vida nos meses seguintes e que só superei mergulhando de corpo e alma no trabalho e na caridade. Quando voltei à plena consciência, a desgraça estava feita. Meus irmãos e o falecido pai espancavam João violentamente.
Águas passadas, mas moviam outra vez o moinho de minha vida.

III.

Ao sair do banho, notei um alvoroço na sala: – O quê? – Era a voz de Leo, o caçula. – O João Passarinho? Aquele que...?
– Você conhece outro?
– Mas tão cedo, Roger? O Hermes prometeu...
– Se o Hermes não tivesse tomado certas providências, o desgraçado teria saído antes. A Lei é suja. Não deu mais para segurar o passarinho na gaiola.
Passarinho. O apelido viera depois do julgamento. Durante o depoimento, João havia tentado falar comigo, emocionar-me, lembrando-me de um passarinho ferido que havíamos encontrado quando crianças. Antes de eu entender, o juiz exigira que ele se limitasse a responder às perguntas. E a tentativa só tinha servido à acusação para ridicularizá-lo.
– Maldito! – rosnou Leo. – E teve a ousadia de pôr os pés de novo em Recanto! Por que terá voltado?
– Boa coisa, não se pode esperar. Mas, se ele imagina que vamos ficar esperando... Vamos encontrá-lo e cortar-lhe as asas.
Senti um alvoroço dentro de mim. O que pretendiam fazer? João já havia cumprido sua pena. Enquanto não demonstrasse más intenções, tinha direito a viver em paz.
– Fique tranqüila, Lu: – falou Leo, percebendo minha presença – vamos dar um jeito nele.
– Não é melhor deixar tudo como está? Ninguém ganhará nada mexendo em uma história que já acabou.
– “Acabou”, uma ova! – O tom da voz de Roger foi ainda mais seco que de hábito. – Acha que voltou por quê? A passeio? Quer vingança. Conheço esse tipo de gente.
Calei-me. Estava confusa. Preferia que não tomassem nenhuma iniciativa, mas a preocupação deles tinha algum fundamento. Eu não me havia esquecido das atitudes de João. Mas onde estava o ódio que se esperava de mim? Os dois saíram e eu fiquei andando de um lado para o outro. Iriam procurar João com más intenções. Seria correto deixar? E seria sensato tentar ajudá-lo? Logo a ele?
Não. Sensato, não seria. Mas dirigi-me à garagem. Sabia de um lugar onde talvez o pudesse encontrar.

(Passarinho é composto de 7 capítulos.)