quinta-feira, 8 de abril de 2010

SÓ (conto publicado em meu livro Inspiração à Beira do Abismo)


Quanto a mim, continuei com a solidão. Não dizem ser ela a pátria das grandes almas? Pois nela, em minha pequenez, sentia-me um estrangeiro.




Não, a canção do velho Montreal não me convencia. Singrava o universo de meu quarto, notas e letra pura alegria, mas eu só absorvia melancolia, pessimismo. Ao simples confronto com meu estado de espírito, as notas risonhas perdiam suas propriedades, fazendo-se solidão, mágoa, dor. A letra dizia “eis a alegria!”, mas eu interpretava “eis o que a vida lhe nega!”
É o efeito do contraste, algo semelhante ao descrito em versos de um poeta local. O título: Filho da Rua. Lembro-me de um trecho:
Já chorava outras feridas,
Pois por certo a subvida
Por si só já é bem triste.
Nesse instante, chorou mais,
Constatando nos demais:
Alegria, então, existe!
O poeta saberia me compreender. Eu era o menino da canção. Aos trinta e sete anos, um menino carente, necessitado de amor, carinho, prazer. Sobretudo, necessitado de estrutura para suportar tais carências.
“Absurdo!”, dirão. Eu tinha, e com sobra, comida, um teto e todo o necessário para sobreviver. Lá fora, desemprego recorde violentando a sociedade e a deixando prenhe de novos filhos da rua. (E FH queria mais quatro anos no poder. Mas será que Lula poderia fazer melhor?) Muita gente padecendo sofrimentos terríveis. Mas isso não amenizava o meu. Pior: a canção do rádio ainda o acentuava com o ritmo dançante.
Que vontade de arremessar o Montreal contra as tábuas enegrecidas da parede, estilhaçá-lo, calá-lo para a eternidade! Uma chuva de resistores, capacitores, válvulas, fios se libertando. Depois, o silêncio, a paz. E o ergui com fúria, um monstro ameaçando tomar as rédeas de meus atos, mas contive o impulso. Pobre aparelho, sem vontade própria, mero objeto da manipulação radiofônica. Não bastava eu o desligar, como pessoa normal que tentava ser? Tão mais simples. Quebrada a seqüência de ondas, interromperia a mensagem absurda, alheia a minha realidade. Um giro, um clique e, enfim, o silêncio, o alívio.
Como que acreditando nesse milagre, busquei o botão liga-desliga. Foi quando soou o último acorde e a canção cessou. Sobreveio um instante de silêncio, frio, absoluto, aterrador. Na imensidão desse instante, esvaíram-se tristeza e pensamentos amargos. Restou o medo. Medo do desconhecido, do momento seguinte, da próxima música. Como se dela dependesse o futuro, a seqüência da vida. Suspense, vulnerabilidade, um calafrio.
Então, a voz súbita do locutor: – Amor e suas dores, inquilinos de um mesmo corpo. Na sua Recanto FM, para você que sofre as dores do amor: Mil Dores.
“Para você que sofre...” Para mim. Era de mim que a canção falava. Mil dores, fundidas em uma só, aguda, lancinante, talvez um dia letal. No início, ela e meus malogrados amores dividiam um mesmo hábitat, tentando destruí-lo. E tinham quase conseguido. Até que promovi o despejo dos amores, um a um. Mas a dor, essa ficou.
É, meu temor concretizou-se: a música era outra, plenamente identificada comigo, mas a tristeza, a mesma. Cobri a cabeça com o travesseiro, abafando o som, mas não a angústia. Não eram as ondas sonoras que a traziam. Ela vinha de dentro, seqüela das frustrações, de meus próprios erros, do desprezo, da solidão.
Acima de tudo, da solidão. Era a causa maior. E eu próprio a tinha construído. No início, do alto de uma pretensa superioridade, observava e julgava as eventuais candidatas à honra de viver comigo. Grande honra, por elas dispensada. Sequer olhavam para “o alto”. Então, que jeito senão rever conceitos, descer, pôr os pés no chão. Mais que isso, tivera de assumir a condição não de quem exige, pois pode escolher, mas de quem deve adaptar-se às exigências para ser escolhido. E nem assim tinha sido. Nessa altura, já não havia mulheres suficientemente próximas para perceberem minha nova postura.
É, eu tinha aprendido muito com a vida, sem chegar a vivê-la. Aprendera, sobretudo, a lição da humildade, do respeito pelas pessoas, em especial as mulheres. Mas, a essa época, tudo já estava disposto inadequadamente: mulheres distantes e, entre mim e elas, minha família, a timidez e a imagem negativa que faziam de mim. Quisera dissipar essa imagem, vencer a timidez, ignorar a opinião familiar, mas que fazer?, quando?, de que modo? Nunca soubera. E fizera sempre a coisa errada, na hora errada, do pior modo. Pobre idiota, despreparado para a vida.
Para ajudar, nunca servi para bonito. Quem iria querer algo comigo? Só mesmo Clara. Quase vinte anos passados, eu ainda lembrava bem de todas as suas palavras naquela manhã de verão no Parque Nazaré: – Vivo me arrependendo por “aprontar”. Isso me faz proibida pra você. Só por você é que gostaria de mudar o passado e o futuro. – Mas eu, ainda do alto de um pedestal, dissera “não”. Se o futuro ela ainda podia mudar, o passado, jamais. Guria falada em todo o bairro, tinha ido para o mato sei lá com quantos. – Una putana! – dissera-me a nonna, – querendo desencaminhar um bom rapaz.
Bom rapaz? Como as pessoas se enganam! Nunca fui mau, mas o que me fazia parecer um rapaz exemplar não era meu valor, e sim minha falta de valor, minha timidez. Como eu gostaria de ter aproveitado a vida como Clara. Meu corpo se consumia a cada desejo não satisfeito. Mas cadê a coragem para viver a vida? Sim, a diferença entre mim e Clara estava em minha covardia. E, por covardia e incoerência, eu, que nunca fui santo, exigia uma santa. E me recusava a sequer pensar nela. Procurava uma guria séria, discreta, fiel. Mais ou menos o oposto a ela.
Anos depois, já com um filho nos braços, Clara havia-se casado. Mas o cara não prestava. Bebia de mais, trabalhava de menos. Um animal violento. Então ela, com dentes a menos e um filho a mais, havia saído do casamento e voltado a morar com o Tonhão, seu pai, bodegueiro lá do Jubileu. Era boa mãe, dizia-se, apesar das saídas à noite em busca talvez do único tipo de alegria que sabia extrair da vida.
Quanto a mim, continuei com a solidão. Não dizem ser ela a pátria das grandes almas? Pois nela, em minha pequenez, sentia-me um estrangeiro. E, nesse tempo todo, só duas amantes, fiéis, incansáveis: a imaginação e minha própria mão. Namorada, nenhuma. Somente sonhos, desejos e as respectivas frustrações. Espera em hora de agir, ação em hora de esperar. Tantas lágrimas contidas, tantas lágrimas derramadas. Um ano seguindo o outro, uma vida que já ia ao meio. Resumo: solidão!
Mas o passado não passava de passado. Hora de chorar a solidão do presente, sem jogar a culpa na canção. E chorei. Literalmente. As lágrimas foram feitas para isso mesmo. Mas não resolveram meu problema. Nem destruir o rádio, nem o desligar, nem nada resolveria. Não parecia haver solução.
Joguei o travesseiro a um canto e busquei a porta. Melhor sair, dar meios para que o destino pudesse me ajudar. Não que eu gostasse. Se pudesse não ter de enfrentar o mundo exterior... Se pudesse ficar no quarto, meu refúgio, o melhor lugar do mundo, apesar da solidão... Mas, e se fosse hoje? E se fosse essa a noite em que tudo deveria acontecer? Só em pensar em ter uma mulher nos braços, sentia o corpo tremer, uma vontade danada de me desmanchar no corpo dela, uma carência do tamanho do mundo. Tinha de sair. Apesar da insegurança, das fobias, de tudo. Não podia me acomodar. Não queria estar no lugar errado, na hora certa. Muito mais fácil seria procurar uma casa noturna, lugar certo sempre, mas eu tinha horror a me expor tanto. Preferia as sombras, o anonimato, onde a timidez perdia forças. Aí, talvez, em uma esquina da vida, encontrasse alguém. E, tão decidido quanto me era possível, abri a porta.
Mas, surpresa: estava chovendo. E a chuva vinha sendo, não raro, minha cúmplice, álibi para justificar a mim mesmo meu enclausuramento, minha covardia. Com chuva, não saía, e ponto final.
Porém, antes de eu fechar a porta, o vulto de alguém correndo. Uma mulher! Buscava abrigo da chuva. Colou-se à parede da casa vizinha, as goteiras passando rente a seu corpo. E que corpo! Cobriam-no roupas pequenas, sugestivas. Estava meio escuro, mas eu via a silhueta contra uma luz ao longe. Um aperto subiu-me à garganta. A simples proximidade de uma mulher deixava-me inquieto, quase apavorado. E, ao mesmo tempo, excitado.
Ela me olhou. Estremeci. Ela também. Talvez fosse o frio. Estava molhada, precisava de um abrigo mais adequado. Mas como a convidar para entrar? Pôr uma estranha dentro de casa.
Sim! Uma estranha! Por isso mesmo eu a devia convidar. Não tinha nada a perder. Na pior das hipóteses, ela recusaria. Ou, entrando e não gostando, simplesmente voltaria à chuva. E nunca mais nos veríamos. Mas talvez gostasse. Ou fingisse gostar, ainda que por pura pena. Tinha de convidá-la. E havia a chuva a justificar o convite e a nos isolar do resto do mundo. Eu não podia perder a chance. Era uma mulher. Talvez pouco agradável, talvez cheia de defeitos, mas mulher. E isso bastava. Já fazia muito tempo, bastava que fosse mulher.
Uma eternidade, aquele instante. A chuva gotejando por toda parte, seu rumor abafando a triste canção no velho Montreal. E eu ali, olhando para ela. E ela me olhando, arfante.
– Entre.
Uma breve hesitação, e ela veio. Parou à porta, tirando os sapatos. Foi então que a reconheci: Clara! Marcada pelo tempo, o sorriso entristecido pela agressão de um covarde, mas era ela. Eu lhe trouxe uma toalha. Ela entrou, secando-se, cuidando para não molhar o assoalho. Olhava-me, insegura. Ofereci-lhe um agasalho, indicando-lhe o banheiro, e ela entrou.
Nessa hora, meu coração, que já batia apressado, disparou: ela deixara a porta aberta. Fiquei indeciso, meio querendo entrar, meio querendo fugir, assumir para a eternidade minha covardia. Até que decidi: tinha de fugir, sim, mas da covardia. Ousei uns passos trôpegos. Ela estava de costas, já em trajes menores. Corpo bonito, de curvas perfeitas, pele ainda lisa. Eu mal conseguia respirar, mas me aproximei ainda mais. Ela voltou-se. Tinha os olhos fechados, e os abriu para libertar duas lágrimas. Em seu brilho úmido, vi solidão, desajuste, desamparo. Vi uma vida sofrida. Vi muito de mim mesmo.
Quis lhe pegar as mãos, mas hesitei. Invadia-me a certeza de que não a estaria assumindo para uma única noite. Não devia pensar melhor? Apostar tudo em algo tão repentino...
Não! Dessa vez, não pensaria. Pensar era o que eu mais tinha feito durante toda a vida, e o resultado não tinha sido nada satisfatório. Senti-lhe o perfume, a respiração ainda arfante. E peguei-lhe as mãos. E abracei-a. Primeiro, com receio; depois, com nervosa avidez. Era carência demais acumulada. Concentrei uma vida toda nos minutos seguintes. Cada gesto, cada carinho compartilhado, eram de importância vital.
Agora, no amigo Montreal, a música era pura emoção. Em seu ritmo, nossos corpos vibraram. Era minha música, composta em tantos anos de solidão, mas até então só executada a solo. Uma música ainda imperfeita. Emocionada, sim, mas ansiosa demais, um pouco sem harmonia. Era a melodia da inexperiência, da carência, da afobação. E cheguei rápido demais ao acorde final.
Então, uma grande insegurança me invadiu. Embora sem parâmetros de comparação, sabia que meu desempenho não tinha sido dos melhores. Ofegante, receoso, olhei para ela. Mas Clara sorriu, doce, e me abraçou com força, como se quisesse me prender para sempre naquele abraço. – Ah, se isso durasse para sempre! Mas lembro de sua resposta, aquela vez, no parque.
Fiquei um momento pensativo. Não era só uma mulher. Havia duas crianças, duas famílias envolvidas, o que as pessoas diriam e um bocado de previsíveis e imprevisíveis problemas. Mas problemas eu sempre tivera. E estava decidido: covardia, nunca mais; solidão, nunca mais. – Esqueça aquela resposta. Perdoe aquela resposta. Perdoe tantos anos perdidos.
Ela me beijou. Queria perdoar com gestos. Queria mais, muito mais. Não uma música de poucos minutos. Queria um concerto inteiro. E muitos outros. Com a mesma emoção, mas também com harmonia. Com o mesmo ardor, mas não sem suavidade. E fez seus instrumentos vibrarem, experientes, afinados. Respondi com os meus, buscando a harmonia, sem nunca esquecer a emoção. E fui vibrante e harmônico em cada nota. Notas penetrantes, tocando fundo. Cada vez mais fundo. Até lhe alcançarem definitivamente o coração, que batia no ritmo do meu, no compasso do vaivém do meu corpo.
Então, era verdade: “alegria, então, existe!” E era alegria que o velho Montreal transmitia. Ele parecia sentir que não tocaria mais para um homem só, nem para um homem triste. E só o que eu queria era viver essa alegria. Queríamos vivê-la. No plural, como nunca antes.
Lá fora, a chuva prosseguia. Mais intensa, sem vontade de parar tão cedo. Mais do que nunca, era minha cúmplice.

10 comentários:

  1. Amigo querido.

    Acompanho seu trabalho, com verdadeira afeição e profunda admiração.

    Vc é um escritor delicado, profundo e atento a suas origens de uma forma, que me emociona por demais.

    Tenho muito, muito orgulho de ser sua amiga e parceira de literatura!

    Beijinhos sombrios e todo o sucesso e reconhecimento desse mundo pra vc, amigo querido!

    Naninha.

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  2. Oi Jocir!
    Gostei MUITO do seu conto!!!
    Parabéns por tanta inspiração!

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  3. Olá, Nana!
    Fiquei muito feliz com sua manifestação carinhosa sobre meu trabalho. Suas palavras são um grande incentivo para que eu continue minha humilde caminhada na Literatura.
    Estou lendo seu livro Fragmentos aos poucos, apreciando sem pressa a sensibilidade e o talento literário em suas poesias.
    Em breve, darei a devida atenção à nossa parceria no Covil da Deusa Vampira.
    Beijos sombrios e carinhosos!

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  4. Oi, Bia!
    Que bom saber que você gostou de meu conto!
    Sua opinião é um incentivo para mim e uma boa propaganda para meu livro.
    Muito obrigado.
    Ocasionalmente, farei visitas a seu blog.
    Beijos!

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  5. Olá, Jocir!!!!!

    Cadê vc, que eu ainda ñ tinha descoberto? Lindo texto!!!! Saiba que vc acabou de ganhar uma fã, que "consumirá" seus textos como quem consome uma droga; da melhor qualidade, claro!!!!!

    Seu texto é lindo, de uma inspiração e sensibilidade incríveis; eu diria até raras, principalmente pra um homem!!!!!

    Vc fala de solidão, amor e dos mais profundos sentimentos com uma delicadeza sem tamanho. Parabéns!!!! ADOREI!!!!

    Beijos,
    Thalyta

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  6. Olá, Thathy!
    Fico muito feliz ao ler um comentário tão positivo sobre meu conto. São manifestações como a sua que levam um escritor a manter-se firme nos caminhos da Literatura. Espero poder manter essa sua boa primeira impressão em leituras futuras.
    Obrigado!
    Beijos!

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  7. Oi, Bia!
    Vou dar uma olhada na promoção.
    Obrigado!
    Bjs!

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  8. É uma mistura de pós-moderno com romantismo, solidão pessimismo. Muito bem escrito. Gostei.

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  9. Boa noite,amigo!Enfim pude lhe fazer esta visita o o premiado fui eu com este belo conto com que fui contemplado.
    Foi um prazer imenso ler você e só fica a dúvida:Tua alma é de escritor ou será mais de um nobre poeta?
    Amei estar aqui!
    Abraços. Alexandre Leão.

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    1. Olá, Alexandre!

      Fico feliz por saber que o amigo apreciou meu trabalho neste conto. "Só", assim como os outros contos que compõem meu livro Inspiração à Beira do Abismo, foi escrito (e reescrito inúmeras vezes) com a intenção de emocionar, convidar à reflexão, e, por fim, se não for muita pretensão de minha parte, alcançar um bom nível literário. Creio que, dentro de minhas limitações (e sei que as possuo e que não são poucas) atingi meus objetivos.

      Espero que o amigo, se um dia tiver meu livro em mãos, aprecie também os outros 11 contos.

      Obrigado pela visita a este humilde (e abandonado) blog.

      Um grande abraço!

      Jocir Prandi

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